Onze e cinquenta e nove. Eu travei o pescoço na piscina horas antes, a mobilidade tava parecida com a do Robocop. Irônico, um fim de ano com sabor de final de filme de ação trash mesmo, um alívio ainda que uma dor latejante que demora a ir embora. Meia noite. A primeira coisa que fiz no ano foi procurar o celular que tinha deixado em algum lugar e provocar a Siri na ânsia de já perguntar quem era o presidente do Brasil. Eu nem uso a Siri, eu só precisava ouvir de alguém que se manteve neutro esse tempo todo. Primeiro de tudo, ao badalar o relógio digital, eu olhei pro horizonte da serra na busca infantil de uma transformação de vida, de Brasil, que fizesse vista no escuro do céu sem fogos, como um descortinar diferente das nuvens, uma textura nova nas árvores, algo ilógico. Nada de novo no horizonte. Aí sim procurei o celular por ali. Tava na mesa de centro baixa, eu me abaixei com dificuldade e senti uma pontada na cervical, uma pontada meio 2018. Pronto, passou. Meu celular, meu oráculo. Deve existir algo ancestral dentro de mim que entende que tudo aquilo que coloco muita energia se torna objeto de adoração absoluta, logo sabedoria máxima. Não me orgulho disso, é só um aparelho eletrônico. Se passei o ano procrastinando por feeds como você também provavelmente fez, parcelando a compra do equipamento modelo dois-anos-anterior-ao-mais-moderno, colocando película e limpando a tela com a roupa como minha avó fazia polindo os santinhos do seu altar, naturalmente ali estaria também a resposta. Ele já tá eleito, mas em tempos tão estranhos era como se precisasse de mais validação. Peguei o celular tal qual um artefato e fiz a pergunta. Quem é o presidente do Brasil. Pra minha surpresa o inominável ainda aparecia como resposta. Reformulei. Quem é o presidente do Brasil a partir de 2023. Ainda ele, só respostas do Google de quem não processa bem o pedido - eu sou mais a Alexa. Deixa, fui dormir. Mais cedo do que qualquer outro réveillon, quase como se tivesse batido o cansaço do ano inteiro desse ano que foi o maior tudo ou nada das nossas vidas, exausto. Ao acordar, nada da resposta. Voltando pro Rio de carro com a família, depois de ter esperado uma chuva torrencial, algo sublime aconteceu. A tecnologia nos permitindo acessar o momento da posse do Lula pelo celular, logo a minha internet que nunca pega. Não deu outra, o sinal oscilante nas curvas da serra de Petrópolis. A parada no posto de provavelmente menor cobertura de internet do Brasil, bem na hora em que ele devia estar subindo com a Dilma (é ela que vai colocar a faixa nele, não é?) a ladeira do congresso. Voltamos a pegar a estrada. Em algum momento, sem arco-íris, sem espaço descampado ou crepúsculo, num trecho qualquer, o sinal surge, bem na hora em que Lula e o Brasil sobem a ladeira do congresso. Lula e uma criança preta, uma mulher catadora de lixo também preta, uma pessoa com deficiência, um indígena, um metalúrgico, um professor, uma cozinheira, um artesão, o povo. Eu olhando a telinha de um celular num carro trepidante descendo uma estrada, nem lembrei que minha cervical doía. A gente acostuma com a dor. Eu me emocionei, meu olho marejou.
Siri quem é o presidente do Brasil? Luiz Inácio Lula da Silva. Ufa.
—"Lula e o povo brasileiro tomando posse” - ilustração por @joaomillerart